quarta-feira, 23 de junho de 2010

episódio piloto



"EXIGIMOS PROVIDÊNCIAS", assim mesmo, em letras maiúsculas, estava escrito no panfleto que recebi, na entrada do banco, quando fui sacar parte de meu salário. Peguei o papel sem ler, saquei o dinheiro e, antes de jogá-lo fora, após ter pago o condomínio em uma lotérica, tive uma súbita curiosidade e resolvi pegar, de volta, o papel já na lixeira.

"As agências bancárias e demais estabelecimentos de crédito são obrigados a fornecer senhas que marcam a data da entrada do cliente na fila, conforme lei municipal blá, blá, blá". Senhas, pagamentos de contas, discussões de relacionamento... bem-vindo à vida adulta, Helder. Para quem não sabe, sou um ghost-writer, daqueles que um dia sonhou em ser ajudante do mágico e que sonhava coisas maiores para si mesmo, durante a infância. "Não quero mais brincar disso", pensei muito tempo depois, já na redação, enquanto digitava esse texto.

Na verdade, vinha pensando em "não quero mais brincar disso" desde que soube que Randy Pausch, autor do livro "A Lição Final" e da palestra "como realizar os sonhos de infância", morreu. Tudo bem, eu sabia que a palestra no You Tube era velha e um tanto piegas. Mas gostei. E, embora o livro tivesse as mesmas características, também gostei.

Durante algum tempo, enquanto transitava com o audiobook de "A Lição Final", narrado de maneira monótona por Paulo Beth, Randy Pausch, o autor norte-americano, foi meu melhor amigo. E, anos depois, quando tive coragem, procurei no Google por "Randy Pausch morre" e me deparo com a seguinte notícia: Fenômeno na internet, professor da "última aula" morre aos 47 anos... Não vou dizer que chorei, porque seria mentira. Mas fiquei extremamente baqueado, e ainda não havia chegado à seguinte conclusão que me motivou após ter encontrado a caixa com os textos, se Aline, a estagiária com cara de surfista, não tivesse caído de moto nos trilhos.

Ao recapitular os cinco minutos do início da tarde, antes do acidente, percebi que nunca havia passado dos cumprimentos com Aline, e talvez se não fosse isso nunca passaria. De beleza intimidativa e fala um pouco malandra, eu só pude percebê-la como pessoa, e querida, depois do que lhe ocorreu. Ela estava bem, e se despediu e, logo depois, estava no chão da rua, cercada de curiosos...

* * *

Foi muito antes de encontrar a caixa com os textos. Aos sete anos, na primeira série, eu faria qualquer coisa em busca de aceitação. E estava apaixonado por Cristiane Bifurco, a garota da capa da Playboy de abril de 1990, que havia fotografado comigo durante um evento na praia para divulgar a revista. O tema de seu ensaio era "Garotas do Interior". E ela, muito doce, e linda, e loira dos olhos azuis, o sonho de qualquer menino que tenha escrito "Xuxa" como primeira palavra, estava lá. Meu coração, também, era de minha prima Gisele, um ano mais velha, morena de cabelos pretos e magricelinha. Os adultos são estranhos, crescemos juntos e hoje quase não nos falamos. Mas, naquela época, enamoradíssimo, cheguei em casa e escrevi o primeiro poema...

* * *

CORAÇÃO DIVIDIDO POR DOIS

Te quero mais não te vejo
Te beijo mais não te vejo
Não te vejo mais te quero
Vejo seu rosto na televisão,
Seus olhos claros e verdes
Seus cabelos claros e loiros
O que devo querer mais


* * *

Não olhei Aline no chão, pensei que estivesse esmagada e rodeada de sangue, mas um senhor disse, em tom conclusivo: "ela está morta". Abracei minha colega de trabalho, que havia começado a chorar diante do corpo estendido no chão. E, diante dos rostos estarrecidos, inclusive o meu, não me senti vivo, mas resolvi colocar em prática a teoria do "passe adiante"...

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